terça-feira, 27 de outubro de 2015

A enquete do dia

     Quase todos os dias e, às vezes, mais de uma vez, liga gente aqui em casa querendo me submeter a questionários.  São pesquisas de mercado, gente vendendo coisa e sei lá quê mais. Normalmente digo que não tenho interesse, nem tempo. 
   Ontem, porém, ligou uma mulher solicitando minha participação numa enquete sobre a quantidade de animais nos lares do país. Uma pesquisa muito importante, dizia ela, e que minha colaboração era de extrema relevância. Como ela tinha uma voz rouca de cantora de sucesso e era simpática, aceitei.
     “O senhor tem algum animal em casa?”, ela me perguntou. Sua voz era uma mistura de Amy Winehouse com Elza Soares.
     “Sim...”, respondi, sem completar a frase.
      Depois de alguns segundos, impaciente com meu silêncio, ela continuou.
     “Um gato, um cachorro...”, deu exemplos esperando minha resposta. Deixei que ela fizesse uma pausa, e tornei.
     “Formiga. Tem formiga que não acaba mais aqui...”
     Ela soltou uma gargalhada. Mas como tinha pressa em telefonar para mais pessoas, agradeceu e me desejou boa noite.
     Desliguei.
     Formiga não é animal? Por que só vale gato e cachorro? Tenho dois formigueiros no jardim. Duas sociedades inteiras que se respeitam e se odeiam. Já as vi brigando por pedaços de pão. Já vi casais apaixonados em acasalamento. Já saiu até morte entre as formigas dos montecchios e as dos capuletos. Tem de tudo lá dentro. Mas a garota da pesquisa não considera minhas formigas, animais.  

 por Flavio Quintale

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Mientras lentamente agonizamos


 
Si la madre España cae – digo, es un decir –
salid, niños del mundo; id a buscarla!...
Cesar Vallejo
 

“Ayer firmé el contrato con la empresa de derribos”. Así abre Diego Alfonsín su novela de estrena “Lenta Demolición”, publicada por las Ediciones Turpial,  obra vencedora del premio Miguel de Unamuno 2105. Es una frase sencilla, pero que, en cierto modo, da al lector un resumen de todo lo que se encontrará después en estas páginas de gran calidad literaria. Al leerla, me acordé súbitamente de la abertura de “El extranjero” de Albert Camus, “aujourd’hui maman est morte”. Son dos inicios de novela bastante simples, banales y, al mismo tiempo, arrebatadores. Hay, todavía, otras relaciones entre estas dos novelas como, por ejemplo, la importante presencia simbólica del mar.

 Los edificios en lenta demolición son también una metáfora de nuestra sociedad hostil y  autodestructiva: “los edificios se han adueñado de un mundo propio que parece tratar de rebelarse en silencio contra los visitantes”. Destrucción que está por todas partes: “tuve la sensación de que habían derrumbando una ciudad entera y de que había miles de personas dedicándose a las labores de destrucción”. 

El deterioro de los edificios y su consecuente demolición y reconstrucción sirve, además, como un gran negocio empresarial en el que los obreros, sin salida, son también explotados por “los de arriba”. Estes trabajadores ejecutan la destruición de los edificios, a saber, de la sociedad en general, al mismo tiempo que destruyen su propia vida y la sociedad en que están inseridos. Trabajan para apenas sobrevivir y, aún por encima, bajo condiciones de trabajo degradantes. Ellos van siendo aniquilados a la par que los predios, en lenta demolición: “los cuerpos de los trabajadores, precipitados al fondo de los suelos abiertos de los edificios, empezaron a multiplicarse. Yacían boca abajo, con los brazos extendidos y un delirio tranquilo en los ojos, derrumbados entre el polvo del abandono”.

Es una obra también de denuncia de las deterioradas condiciones de trabajo en el mundo contemporáneo, con sus contratos escandalosos por tiempo determinado, dejando ejércitos de gente como precarios o al paro. Asistimos a la pérdida de muchísimos derechos conquistados a través de la lucha y el martirio de generaciones y generaciones de trabajadores a lo largo de los últimos siglos. Y, lo peor de todo, es que uno se queda con la impresión de que nada puede ser hecho para cambiar la situación.  

Todas las instituciones van a demoliéndose: “la iglesia la dejaremos para el final, ese trabajo lo haremos juntos”. Pero hay muchos misterios, como los mensajes que aparecen en las paredes de los edificios y que debe ser descifrados. Inscripciones misteriosas en los muros que intrigan a los operarios y dejan el lector curioso, en tenso suspense.  

 Así se comprende porque en la abertura de la novela ya se tiene un resumen de los temas tratados en la obra: el pasado, “ayer”; “el contrato con la empresa”, a saber, el mundo del trabajo y la dialéctica de señor y siervo;  y, por fin, los “derribos”, los edificios y la sociedad que agoniza lentamente. Hay, entre tanto, una esperanza, ya que en este edificio en demolición “hay flores azules alumbrando las tinieblas al fondo de los suelos abiertos”. Una esperanza de que, un día, quizá, también en nuestra sociedad puedan nacer flores “en la oscuridad del fondo”. Entonces, “un pueblo de luz” podrá cantar y bailar “alrededor de pequeñas hogueras”.

 
por Flavio Quintale

 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Para a sua coleção, Ricardo

     Se existe vida após a morte, para onde vai o suicida? Por que, dizem as religiões em geral, não é permitido à alma suicida juntar-se às não suicidas? Por que esse além-sectarismo? Se não há vida eterna, por que condenar o suicida? Por que julgá-lo por seu ato inexplicável? Essas são algumas questões que suscita a leitura do romance O céu dos suicidas de Ricardo Lísias publicado pela Alfaguara.
     O mistério indecifrável desse ato aterrorizador perturba os vivos. Não é diferente com o personagem do romance, Ricardo Lísias, que luta para compreender a solução extrema empreendida pelo amigo: “quando tudo começou, minha primeira reação foi sentir ódio do André. Tenho vergonha de dizer: mal ele tinha sido enterrado, eu o xingava, falando sozinho na rua”. Sua incompreensão não está livre de algum remorso: “sentir saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se”. A agonia intensifica-se “porque todo mundo diz que quem se mata não vai para o céu”.
     André, historiador, interessado na Ordem dos Templários, “era católico. Ele não ia à missa, e muito menos obedecia aos rituais contemporâneos, mas cumpria suas obrigações religiosas por meio de um código particular”. Mas explicações religiosas não satisfazem o personagem Ricardo Lísias. Não existe propriamente a negação da existência de Deus, num primeiro momento. Ele apenas não aceita suas ações, ou a falta delas: “Os suicidas sofrem. Deus desgraçado”. Até que a ira toma conta de Ricardo e ele se volta violentamente contra os ensinamentos das igrejas, independentemente da confissão. Sobra para o pastor protestante: “Olha aqui, seu filho da puta, não sei como vocês dessas religiões saem por aí fazendo propaganda de Deus, você já viu Deus?, me responde, seu filho da puta: você já viu Deus? Então vai tomar no cu. Vai todo mundo tomar no cu.” Sobra também para o Papa Bento XVI: “E esse papa, esse papa aí não foi nazista, não? Todo mundo sabe, seu filho da puta, todo mundo sabe que vocês são pedófilos”.
    A solução reside possivelmente nas contradições: “Nunca acreditei em paraíso, nessas coisas, mas agora descobri que, mesmo tendo se matado, se enforcado, o André parou de sofrer e foi direto para o céu”. Se não existe a vida eterna, não há razão para se lamentar a perda do paraíso. A revolta só faz sentido para aquele que acredita na existência do céu e não se conforma com a impossibilidade do suicida entrar nele. Assim, talvez a questão fundamental não seria o suicida ir ou não ir para o céu, mas antes, se existe ou não o tal céu.
    O narrador Ricardo Lísias é um colecionador benjaminiano: “uma coleção não é um mero acúmulo, mas a história que há por trás de cada um dos itens”. Ele se lembra das coisas antes delas acontecerem. O tempo da narrativa não é linear e o leitor deve estar atento às antecipações e aos retardamentos intencionais.
    O romance é uma homenagem ao amigo André: “uma coleção é como um amigo [...] um presente a esse grande amigo. Aqui está, André”. E não apenas a ele, mas a todos os suicidas, a todas as vidas que lamentavelmente se vão: “a gente descobre o nosso tamanho só quando morre”. É a morte, afinal, que dá algum sentido à existência. 
 
por Flavio Quintale
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Infância em São Paulo

Quando fui criança em São Paulo tinha bastante mais que nada, mas muito menos que tudo. Meninos de classe média são os menos livres. Os ricos vão para Nova York, Londres e Paris, ou quando ficam, vivem em condôminos fechados, mansões muradas com cercas eletrificadas, guardas armados, e vigiados dia e noite por guarda-costas e câmeras de circuitos fechados para não serem sequestrados. Os pobres perambulam pela cidade e voltam talvez à noite para os barracos miseráveis, quando não são mortos. Se não estão no tráfico ou na prostituição, são mão de obra quase gratuita na economia informal. Vendedores de balas e chicletes ou lavadores de para-brisa nos semáforos. Eu sobrevivi asfixiado, porque a família tinha dívidas para pagar, e preso perpetuamente no nosso sobradinho, paralisado, pelo pânico de viver, pânico do crime, pânico de não ter trabalho quando crescesse, nem carro, nem casa, nem nada, clamando pela paz, bem alto das grandes da sala, cheio de medo da ameaça dos monstros do delito. Minha única chance de liberdade era vestir a roupa do Superman que minha mãe costurara, ela mesma, e pular do quinto degrau da escada com o braço estendido bradando, repleto de alegria: para o alto... e avante!

do "Livro dos Textículos" de Flavio Quintale 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Em tradução alemã

Conto inédito de Flavio Quintale publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, edição 1360, maio/junho 2015.