quinta-feira, 3 de setembro de 2015

As tribulações de um jovem Sefirot caótico


“Lembrei-me das palavras dos antigos cabalistas, alertando que a diferença entre luz e trevas é ilusória, pois ambas são únicas em natureza, e não há luz sem trevas, e não há trevas sem luz”. Essa citação intrigante colhida na página 27 é, em certo sentido, o tema fundamental do consistente romance Uma leve simetria de Rafael Bán Jacobsen publicado pela Não-Editora. 

Mas o leitor não precisa ter lido Gershom Scholem, muito menos ser conhecedor do Zohar ou do Bahir, para seguir essa narrativa envolvente onde tudo se refere ao duplo, ao real e ao ilusório, ao ser e ao parecer. A dicotomia aparece na personagem Daniel. Basta o leitor o seguir, atento a sua consciência atormentada e as suas aflições, para compreender o quanto ele sofre com seus escrúpulos e dilemas. As perturbações de um sujeito profundamente religioso ao descobrir desejos homossexuais: “se olharmos friamente para a Lei, nada impede o gostar; contudo, a realização é vedada”.               

Utilizando-se da imagem dualista da mística judaica, Rafael apresenta um tema extremamente atual, que atinge em cheio a sociedade brasileira. Em tempos de discursos intransigentes e apoderação de grupos religiosos da mídia e da máquina política nacional, o romance problematiza o drama do sujeito individual, esquecido dos grandes debates públicos, na luta com seus demônios pessoais: “Deve ser tão bom ter um Deus que se pode ver, pensei. O meu, contudo, permanece invisível, invisível e grandioso como a guerra travada dentro de mim”.

A obra está recheada de referências ao Pentateuco e diferentes versículos do Salmo 119 separam os capítulos. Sem contar as inúmeras passagens de ensinamentos da Kabbalah como: “no vazio de infinitos grãos, incontáveis mônadas, fadadas ao nada, espelhando o universo inteiro”. E, embora as alusões ao mundo judaico sejam constantes, o romance não se fecha ao particular, pelo contrário, aborda uma problemática ampla, vivida também por cristãos e mulçumanos.

Como um personagem de Kafka, o medo de um Deus rigoroso e vingador também atribula os seus: “adiante, na escuridão, o Rei os observava”. E, ainda que o romance não tenha nada de kafkiano, ele é absolutamente kafkiano. Fala de uma coisa para muitos para falar de outra para poucos. Não são também O Processo e O Castelo monumentos da Kabbalah em forma de romance? O leitor tire suas conclusões. 

                A narrativa é bem construída e Rafael demonstra grande conhecimento de teologia e filosofia, além de ter competente domínio da escrita, refletidas nas construções e no vocabulário apurado que permeiam a obra. Curiosamente, para o mundo em que vivemos, esse talvez seja o seu maior pecado.

por Flavio Quintale

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