quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Espancando o leitor, esquartejando a literatura.


Os contos de Um Homem Burro Morreu de Rafael Sperling  servem a todas as pessoas que nunca tiveram, ao mesmo tempo, experiências com raposas e codornas. Tudo é possível no mundo. Mas no mundo de Sperling, apenas as certezas são impossíveis. As merdas de “Festa na Usina Nuclear”, sua primeira obra, ganham requintes de iguaria. Como o foie gras, esse livro corre grande risco de ser proibido em São Paulo.
Caetano Veloso vira personagem literário. E, pasmem, sem cuequinha à mostra, mesmo indo ao banheiro. Os heróis de Rafael são assim: não sabem fazer chá. No máximo sentam-se e seguram um rabanete. Em Eles eram muitos cavalos, o autor apresenta uma paródia do verso de Cecília Meireles e do conhecido livro de cenas paulistanas. “Eles eram muitos cavalos. Eles eram um monte de cavalos. Sério, era cavalo pra cacete. [...] Era uma quantidade gigantesca, não dava nem pra ver onde acabavam os cavalos”. O deboche vai até a conclusão reveladora: “Eles eram muitos cavalos, mas muito burros também”.
Sobrou até para Dante Alighieri. Em Um dia comum para Dante Alighieri, o grande poeta italiano, herói nacional, não passa dum miserável suburbano, como se Guelfos e Gibelinos, classe política, não fossem nada mais que gangs da periferia. Algum exagero?
Franz Kafka dança balé. O Homem Aranha, lambada. Branca de Neve vira uma espécie de rainha do Funk. “Os anos se passaram e Branca de Neve foi crescendo e crescendo, cresceram os peitos, as coxas, a bunda”. É contemplada nua, para delírio dos sete anões tarados. Rafael masturba imaginação nos seus contos. Detona, sem manter o respeito. É um talento sem-vergonha e safado. L’enfat terrible da literatura brasileira contemporânea.  A propósito, em termos de masturbação, seus personagens só perdem para os de Murakami, japonês mestre da descascada, o bronha sam.
Blasfemo, obsceno em Jesus Cristo espancando Hitler. Nem o Cristo de Dalí foi tão provocador. Nem Oswald de Andrade ousou dessa maneira. Nem Saramago foi tão explícito. Um Jesus Cristo sádico, malhando o execrável assassino, fazendo-o provar do próprio veneno. Ninguém é perdoado, nem os poetas, soberbos e vazios, que, em tom bíblico, vangloriam-se de versos como: “Vai, e não esquece da mandioca”, que título ao conto.
Em Ploin e Mânima – Drama em 5 atos, uma sátira a Samuel Beckett e à insistência aos silêncios de Harold Pinter, Rafael revela algumas de suas fontes literárias. Nesse “drama”, não se livra do escárnio nem o número sete, vedete de esotéricos e andarilhos místicos.
É notável a evolução de sua escrita e de seus conteúdos. Pornoniilista surreal, Rafael Sperling não quer escrever bonito. Violento e promíscuo, como o mundo em que vivemos, ele comprova, nesse segundo livro de contos publicado pela Oito e Meio, que faz literatura com o martelo. O leitor, nocauteado, termina em frangalhos debaixo dos escombros.  
 
por Flavio Quintale

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O palitinho do alemão


As semelhanças entre a Prússia e o Japão foram exaustivamente expostas pelos historiadores, embora os estereótipos sejam das coisas mais discutíveis que já se inventaram. Aquela coisa de que ambas as nações pensam em acumular capital mais do que viver, que têm muita competência, energia, crueldade  e avareza, tudo isso com muita obediência, que é ao mesmo tempo sua fortaleza e sua fraqueza. Um dia desses, resolvi almoçar num restaurante japonês na Alemanha. Talvez eu quisesse matar saudades dos passeios pelo bairro da Liberdade em São Paulo, que sempre tinham uma paradinha obrigatória para provar uns tantos sushi, sashimi, nigiri e por aí vai. É elegante alguém dizer que não gosta de indiscrição no restaurante, de ficar reparando no que os outros estão comendo nas mesas ao lado. Mas a verdade é que todo mundo disfarça e sempre dá uma olhadela nos pratos alheios. Não fugi à regra. Na mesa ao lado, um alemão resolveu pedir uma porção de chucrute. Ri internamente, com a boca do estômago, porque não queria ser indiscreto, nem parecer deselegante. Chucrute num restaurante japonês? Comeria o alemão chucrute de palitinho? Não. Não pode ser. Aparece cada personagem na vida real, pensei. Mas para minha surpresa, tinha. Havia chucrute. E lá foi o kamikaze bávaro, com palitinhos nervosos, mandando a carne, os legumes e a repolhada goela abaixo. Aquilo tudo junto, muito misturado, deve ter dado uma baita Blitzkrieg no banheiro da casa dele. Dizem que boas teorias se comprovam na prática. Então compreendi a frustração dos historiadores que precisam de infinitas análises e centenas de volumes em idiomas variados para comprovarem hipóteses, que em um almoço qualquer estariam resolvidas.
por Flavio Quintale