quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Diálogos machadianos na era da internet

“O canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”. A partir dessa citação de Machado de Assis, Godofredo de Oliveira Neto intitulou seu livro Ilusão e Mentira: as histórias de Adamastor e Lalinha publicado pela editora Batel. Duas histórias compõe o volume.
    A primeira, O galo Adamastor, é inspirada em uma passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que se descreve uma briga de galos. Com esse galo inglês, Godofredo atualiza a história: “Juntemo-nos à roda e ouçamo-lo. Se quiserem gravar no iPad ou no celular, fiquem à vontade, podem tirar fotos com flash, sem flash, com zoom, sem zoom, como quiserem, aqui é o território da arte, território livre da arte, onde se misturam norma culta da língua portuguesa com registro popular, música clássica com ritmos contemporâneos, balé clássico com capoeira, ópera com cantos do nosso folclore”. O mundo moderno é civilizado. “Briga de galo é coisa do passado, esporte típico da perversidade humana, acabou faz tempo, mano, ainda bem. Os galos de briga são agora valorizados pela sua estampa, o que vale é estética”. Até os galos sucumbem à sociedade das ilusões, das mentiras. Aquela mesma que proibi as rinhas de Galo, mas investe milhões em lutas livres na TV. O povo vai ao delírio. Muita gente enche os cofres. “A violência incentivada e premiada migrou para os jogos eletrônicos dessas lojas do shopping e para lutas sangrentas de humanos com humanos em ringues primorosos, lutas assistidas por milhões de telespectadores pelo mundo afora.”
    Procura-se contemplar a literatura brasileira de ontem e de hoje: “tens que estudar mais, ler Alencar, Machado, Lima Barreto, Cruz e Souza, Graciliano, Rosa, Clarice. E também os contemporâneos. Tem coisas ótimas sendo escritas. Senão tu não entendes nada do que está acontecendo no mundo de hoje, bródi, nadinha. Procuro apoio nas redes sociais da internet e coisas do gênero, talvez sejam o fármaco de que precisas”. Deflagra-se um narrador contemporâneo: “Não pude deixar de tirar uma foto da paisagem com meu tablet de última geração, foto logo enviada para as redes sociais. Em poucos minutos dezenas de amigos curtiam o cenário e compartilhavam aquela beleza. [...] Bati uma foto das casas açorianas. E fiz um caprichado selfie, o mar acolhedor às minhas costas”. 
   A segunda história, Val e Lalinha, traz uma citação de Dom Casmurro. Vê-se uma fotografia do Rio de Janeiro contemporâneo. O crime passional e o ambiente do crime e do tráfico emolduram a história. “O amor vem ou porque o cara é lindo pra caramba, parecido com um ator de novela, ou porquê lembra o pai, ou porque tem grana, ou porque faz pensar no primeiro namoradinho, ou porque tem poder, ou porque é político e dá emprego pra família da gente e por aí afora. Sempre tem uma razão. Não vem assim do nada não, assim do nada só nos romances que a professora lia para a gente na Escola José de Alencar. Sem essa de ficar como uma flor no meio do mato esperando algum gato colher a gente. Pode esperar sentada que isso não existe”.
   Respira-se Machado de Assis ao longo do livro. Ilusão e Mentira é um tributo do autor a seu mestre. O livro certamente despertará o interesse dos leitores machadianos.  
por Flavio Quintale

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Dezembro é um bom mês pra presentear

    As avós são raramente lembradas nas obras de ficção. Não é o que ocorre no romance Julho é um bom mês pra morrer de Roberto Menezes, publicado pela editora Patuá. A avó é presença constante na memória da protagonista: “No meu aniversário de oito anos, voínha me deu um dicionário. ‘Pra você entender que às vezes o que você sente tem palavra para isso’, imagino ter sido a dedicatória que ela nunca escreveu”.
    Voínha, vetor de reflexões, expõe também suas ideias com exemplos de física: “Os deuses foram criados amiúde. Quando falo Deus, leia destino, acaso, em minúscula mesmo. Um acaso sem arbítrio. Um deus e suas regras primitivas, inflexíveis. Desde o começo dos tempos, se uma pedra é solta no ar, esse deus é forçado a derrubar essa pedra. Não é de sua escolha fazer a pedra flutuar. Pedras só flutuam em sonhos e fábulas para crianças. Deus é um escravo que, pelas eras, foi o obrigado a manter as forças da natureza intactas. Doa a quem doer. A água que embeleza a cachoeira é a mesma que afoga. Deus é um dado viciado”. Esse Deus, “vício das coisas”, é uma espécie de criador incompetente, sem liberdade, já que cria regras que nem ele mesmo é capaz de domar.  Apenas o sonho e a fábula são capazes, de alguma maneira, de romper com a natureza das coisas. “Milagre é a poesia do acaso. É quando você dá de cara na esquina com o ladrão, só que o inverso disso”.  
     O vocabulário é fácil e cotidiano: “Voínha cagava pra estrada. Era daquelas que fecham os olhos no começo da viagem e só abrem no ponto final”. [...]“Copa no Japão. Felipão, Cafu, Rivaldo. Gol. Gol. É penta nessa porra, é penta! [...] Torci a Copa toda. Vai, Rivaldo! Arrebenta, seleção. Gritei com Cafu quando Ronaldo arrombou o rabo dos alemães”. [...]“Marcello Novaes e Carolina Dieckmann se beijavam na praia. A espuma nas ondas. A pele dourada. A claridade do sol. Eu, Laura menina branca cor de vela, nunca esperei ser personagem de uma cena dessa. Novela das sete de merda, de beijos forjados [...] Vi um vídeo no youtube um dia desses, veio numa corrente genérica de email”.
       “Uma escritora um dia já disse que a gente nasce e morre só. Essa é a lei. Vale pra uma bactéria. Vale pra uma baleia. Vale até pra uma enorme estrela.” Vozes femininas narram a história. A mulher que preza a liberdade e que tem um “vibrador do Paraguai”. Amor entre neta e avó, amores entre mulheres, amores em geral. A mulher é também o grande tema, talvez o propósito fundamental, dessa narrativa ambientada predominantemente na Paraíba. A Universidade Federal da Paraíba, onde o autor é professor, aparece citada diversas vezes. “Nas tardes da UFPB, eu esperava o próximo salvador de boa lábia, qualquer um pra me tirar do estado de espera. E eu sabia que isso uma hora ia acontecer”.
          O título do romance, porém, já indica ao leitor o tema que perpassa por toda a narrativa: a morte. As referências ao Antigo Testamento são constantes. Abraão e, sobretudo, Moisés e a passagem do povo pelo Mar Vermelho trazem também carga simbólica à obra. “Era só baixar os braços e imergir. Imergir e endurecer os membros, eu submersa não ia durar tanto. [...] um mar se abrindo para mim, eu perdendo o fôlego, afundando [...] virei o seu espelho”. Nascer é a primeira forma de morte.
 
por Flavio Quintale

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Trincheiras humanas


Integração, palavra-chave num mundo de migrações, imigrações e refugiados como o nosso, é sinônimo de conflitos e finais nem sempre felizes. Essa questão faz do romance Malditas Fronteiras de João Batista Melo publicado pela Benvirá uma obra de extrema atualidade, mesmo sendo predominantemente ambientado no período da Segunda Guerra Mundial.

                Instalar-se, deslocar-se num país diferente do seu, sem saber se o futuro será, de fato, melhor que o passado é uma situação dramática. A fala do capitão do navio de imigrantes é também uma metáfora: “Eu não gosto nem um pouco quando sou obrigado a vagar para cá e para lá, igual àquela vez no bosque com meu pai, sem saber onde vou poder enfim atracar. Isso não é humano, senhora”. A integração é algo vistoso no discurso, mas na realidade está posta num abismo, cercada por um muro, na maioria das vezes invisível: “Um duelo sem final que travavam há muito tempo, uma peça a mais no muro que construíam entre si, afastando-se para mundos intransponíveis nos quais algum dia talvez não pudessem mais se reconhecer mutuamente”.

                A rejeição sofrida, mostra o autor, não é somente um drama para o refugiado, mas a prova de que o ser humano que rejeita outro gratuitamente é um adoentado num mundo débil: “Talvez tenhamos. Talvez todos os homens tenham a peste”.

Ao tratar de imigrantes alemães no Brasil, seja em Belo Horizonte, cidade natal do autor, ou em outros lugares do país, João Batista desfila referências a grandes nomes da literatura e da cultura de língua alemã: Goethe, os Irmãos Grimm, Wagner, Mann, Freud, Remarque, Musil, Heine, Brecht, Fritz Lang e por aí afora. Sem esquecer, evidentemente, da cerveja e dos mestres cervejeiros, responsáveis por esse elixir dourado que faz o mundo todo reverenciar a Alemanha.

Não são as únicas, mas Belo Horizonte e Berlim, são cidades especiais para o romance. A primeira, com suas contradições, aparece também retratada por personagens históricos: “João Paulo II ergueu os braços para abençoar a cidade com a frase “que belo horizonte”, quase ao mesmo tempo em que o poeta Drummond a chamava de “triste horizonte”.  Já a capital alemã: “Berlim era o labirinto. Mas o Minotauro não esperava no meio das ruas repletas de carros ou entre os prédios novos que se intercalavam às edificações históricas. [...] Berlim era o labirinto. E não adiantariam marcas no caminho, novelos de  lã ou restos de pão como nos mitos e contos de fadas”.

João Bastsita não se aventura em experimentalismos e tem linguagem apurada para falar de tragédias, como a queima de livros: “Ideias carbonizadas. Sentimentos em cinzas”. Procura não cair nas armadilhas da indústria cultural que jamais esgota a monótona repetição do mesmo. Prudente, faz parte do prestigioso elenco das letras de um dos estados mais fecundos do país: “E os nativos de Minas Gerais são muito cautelosos”.
 
por Flavio Quintale













 
 
 
 
 
 
 
 




terça-feira, 27 de outubro de 2015

A enquete do dia

     Quase todos os dias e, às vezes, mais de uma vez, liga gente aqui em casa querendo me submeter a questionários.  São pesquisas de mercado, gente vendendo coisa e sei lá quê mais. Normalmente digo que não tenho interesse, nem tempo. 
   Ontem, porém, ligou uma mulher solicitando minha participação numa enquete sobre a quantidade de animais nos lares do país. Uma pesquisa muito importante, dizia ela, e que minha colaboração era de extrema relevância. Como ela tinha uma voz rouca de cantora de sucesso e era simpática, aceitei.
     “O senhor tem algum animal em casa?”, ela me perguntou. Sua voz era uma mistura de Amy Winehouse com Elza Soares.
     “Sim...”, respondi, sem completar a frase.
      Depois de alguns segundos, impaciente com meu silêncio, ela continuou.
     “Um gato, um cachorro...”, deu exemplos esperando minha resposta. Deixei que ela fizesse uma pausa, e tornei.
     “Formiga. Tem formiga que não acaba mais aqui...”
     Ela soltou uma gargalhada. Mas como tinha pressa em telefonar para mais pessoas, agradeceu e me desejou boa noite.
     Desliguei.
     Formiga não é animal? Por que só vale gato e cachorro? Tenho dois formigueiros no jardim. Duas sociedades inteiras que se respeitam e se odeiam. Já as vi brigando por pedaços de pão. Já vi casais apaixonados em acasalamento. Já saiu até morte entre as formigas dos montecchios e as dos capuletos. Tem de tudo lá dentro. Mas a garota da pesquisa não considera minhas formigas, animais.  

 por Flavio Quintale

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Mientras lentamente agonizamos


 
Si la madre España cae – digo, es un decir –
salid, niños del mundo; id a buscarla!...
Cesar Vallejo
 

“Ayer firmé el contrato con la empresa de derribos”. Así abre Diego Alfonsín su novela de estrena “Lenta Demolición”, publicada por las Ediciones Turpial,  obra vencedora del premio Miguel de Unamuno 2105. Es una frase sencilla, pero que, en cierto modo, da al lector un resumen de todo lo que se encontrará después en estas páginas de gran calidad literaria. Al leerla, me acordé súbitamente de la abertura de “El extranjero” de Albert Camus, “aujourd’hui maman est morte”. Son dos inicios de novela bastante simples, banales y, al mismo tiempo, arrebatadores. Hay, todavía, otras relaciones entre estas dos novelas como, por ejemplo, la importante presencia simbólica del mar.

 Los edificios en lenta demolición son también una metáfora de nuestra sociedad hostil y  autodestructiva: “los edificios se han adueñado de un mundo propio que parece tratar de rebelarse en silencio contra los visitantes”. Destrucción que está por todas partes: “tuve la sensación de que habían derrumbando una ciudad entera y de que había miles de personas dedicándose a las labores de destrucción”. 

El deterioro de los edificios y su consecuente demolición y reconstrucción sirve, además, como un gran negocio empresarial en el que los obreros, sin salida, son también explotados por “los de arriba”. Estes trabajadores ejecutan la destruición de los edificios, a saber, de la sociedad en general, al mismo tiempo que destruyen su propia vida y la sociedad en que están inseridos. Trabajan para apenas sobrevivir y, aún por encima, bajo condiciones de trabajo degradantes. Ellos van siendo aniquilados a la par que los predios, en lenta demolición: “los cuerpos de los trabajadores, precipitados al fondo de los suelos abiertos de los edificios, empezaron a multiplicarse. Yacían boca abajo, con los brazos extendidos y un delirio tranquilo en los ojos, derrumbados entre el polvo del abandono”.

Es una obra también de denuncia de las deterioradas condiciones de trabajo en el mundo contemporáneo, con sus contratos escandalosos por tiempo determinado, dejando ejércitos de gente como precarios o al paro. Asistimos a la pérdida de muchísimos derechos conquistados a través de la lucha y el martirio de generaciones y generaciones de trabajadores a lo largo de los últimos siglos. Y, lo peor de todo, es que uno se queda con la impresión de que nada puede ser hecho para cambiar la situación.  

Todas las instituciones van a demoliéndose: “la iglesia la dejaremos para el final, ese trabajo lo haremos juntos”. Pero hay muchos misterios, como los mensajes que aparecen en las paredes de los edificios y que debe ser descifrados. Inscripciones misteriosas en los muros que intrigan a los operarios y dejan el lector curioso, en tenso suspense.  

 Así se comprende porque en la abertura de la novela ya se tiene un resumen de los temas tratados en la obra: el pasado, “ayer”; “el contrato con la empresa”, a saber, el mundo del trabajo y la dialéctica de señor y siervo;  y, por fin, los “derribos”, los edificios y la sociedad que agoniza lentamente. Hay, entre tanto, una esperanza, ya que en este edificio en demolición “hay flores azules alumbrando las tinieblas al fondo de los suelos abiertos”. Una esperanza de que, un día, quizá, también en nuestra sociedad puedan nacer flores “en la oscuridad del fondo”. Entonces, “un pueblo de luz” podrá cantar y bailar “alrededor de pequeñas hogueras”.

 
por Flavio Quintale

 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Para a sua coleção, Ricardo

     Se existe vida após a morte, para onde vai o suicida? Por que, dizem as religiões em geral, não é permitido à alma suicida juntar-se às não suicidas? Por que esse além-sectarismo? Se não há vida eterna, por que condenar o suicida? Por que julgá-lo por seu ato inexplicável? Essas são algumas questões que suscita a leitura do romance O céu dos suicidas de Ricardo Lísias publicado pela Alfaguara.
     O mistério indecifrável desse ato aterrorizador perturba os vivos. Não é diferente com o personagem do romance, Ricardo Lísias, que luta para compreender a solução extrema empreendida pelo amigo: “quando tudo começou, minha primeira reação foi sentir ódio do André. Tenho vergonha de dizer: mal ele tinha sido enterrado, eu o xingava, falando sozinho na rua”. Sua incompreensão não está livre de algum remorso: “sentir saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se”. A agonia intensifica-se “porque todo mundo diz que quem se mata não vai para o céu”.
     André, historiador, interessado na Ordem dos Templários, “era católico. Ele não ia à missa, e muito menos obedecia aos rituais contemporâneos, mas cumpria suas obrigações religiosas por meio de um código particular”. Mas explicações religiosas não satisfazem o personagem Ricardo Lísias. Não existe propriamente a negação da existência de Deus, num primeiro momento. Ele apenas não aceita suas ações, ou a falta delas: “Os suicidas sofrem. Deus desgraçado”. Até que a ira toma conta de Ricardo e ele se volta violentamente contra os ensinamentos das igrejas, independentemente da confissão. Sobra para o pastor protestante: “Olha aqui, seu filho da puta, não sei como vocês dessas religiões saem por aí fazendo propaganda de Deus, você já viu Deus?, me responde, seu filho da puta: você já viu Deus? Então vai tomar no cu. Vai todo mundo tomar no cu.” Sobra também para o Papa Bento XVI: “E esse papa, esse papa aí não foi nazista, não? Todo mundo sabe, seu filho da puta, todo mundo sabe que vocês são pedófilos”.
    A solução reside possivelmente nas contradições: “Nunca acreditei em paraíso, nessas coisas, mas agora descobri que, mesmo tendo se matado, se enforcado, o André parou de sofrer e foi direto para o céu”. Se não existe a vida eterna, não há razão para se lamentar a perda do paraíso. A revolta só faz sentido para aquele que acredita na existência do céu e não se conforma com a impossibilidade do suicida entrar nele. Assim, talvez a questão fundamental não seria o suicida ir ou não ir para o céu, mas antes, se existe ou não o tal céu.
    O narrador Ricardo Lísias é um colecionador benjaminiano: “uma coleção não é um mero acúmulo, mas a história que há por trás de cada um dos itens”. Ele se lembra das coisas antes delas acontecerem. O tempo da narrativa não é linear e o leitor deve estar atento às antecipações e aos retardamentos intencionais.
    O romance é uma homenagem ao amigo André: “uma coleção é como um amigo [...] um presente a esse grande amigo. Aqui está, André”. E não apenas a ele, mas a todos os suicidas, a todas as vidas que lamentavelmente se vão: “a gente descobre o nosso tamanho só quando morre”. É a morte, afinal, que dá algum sentido à existência. 
 
por Flavio Quintale
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Infância em São Paulo

Quando fui criança em São Paulo tinha bastante mais que nada, mas muito menos que tudo. Meninos de classe média são os menos livres. Os ricos vão para Nova York, Londres e Paris, ou quando ficam, vivem em condôminos fechados, mansões muradas com cercas eletrificadas, guardas armados, e vigiados dia e noite por guarda-costas e câmeras de circuitos fechados para não serem sequestrados. Os pobres perambulam pela cidade e voltam talvez à noite para os barracos miseráveis, quando não são mortos. Se não estão no tráfico ou na prostituição, são mão de obra quase gratuita na economia informal. Vendedores de balas e chicletes ou lavadores de para-brisa nos semáforos. Eu sobrevivi asfixiado, porque a família tinha dívidas para pagar, e preso perpetuamente no nosso sobradinho, paralisado, pelo pânico de viver, pânico do crime, pânico de não ter trabalho quando crescesse, nem carro, nem casa, nem nada, clamando pela paz, bem alto das grandes da sala, cheio de medo da ameaça dos monstros do delito. Minha única chance de liberdade era vestir a roupa do Superman que minha mãe costurara, ela mesma, e pular do quinto degrau da escada com o braço estendido bradando, repleto de alegria: para o alto... e avante!

do "Livro dos Textículos" de Flavio Quintale 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Em tradução alemã

Conto inédito de Flavio Quintale publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, edição 1360, maio/junho 2015.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 





quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Lados A e B


lado A

Em uma tarde silenciosa, lia meus livros de poesia. A monotonia das horas, para ela, era um fastio. Vestida toda de branco aproximou-se me reprovando: “Tu desprezas meus lábios para entregar-te a teus versos”. E foi-se com o passo lento, esperando que eu me pronunciasse. Displicente, levantei a cabeça e mirei seu andar de soneto. Mas o deleite das imagens e os sons enlouquecidos das palavras dominavam minha alma extasiada de admirar as curvas das elegias. Permaneci em silêncio contemplando as formas, ouvindo os poemas e suas promessas de paraíso. Ela partiu enraivecida, com o ego entristecido, e deixou-me embriagar com o néctar dos alexandrinos.

 
lado B

Em uma tarde silenciosa, lia meus livros de poesia. A monotonia das horas, para ela, era um fastio. Vestida toda de branco aproximou-se me reprovando: “Tu desprezas meus lábios para entregar-te a teus versos”. E foi-se com o passo lento, esperando que eu me pronunciasse. Displicente, levantei a cabeça e mirei seu andar de soneto. Seu caminhar heroico e seus braços nus de alegoria despertaram-me o desejo dos longos dísticos com rima. Tomei-a pelas costas, de surpresa, e minha pena embalou-a na cantiga e cada beijo completava uma estrofe da elegia que compus em seu leito. Ela permaneceu estendida, com o ego envaidecido, e deixou-me embriagar com o néctar de seus sorrisos.

 

do “Livro dos Textículos” de Flavio Quintale

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Dia, modo de usar


Oito dias na vida de moradores de um prédio “numa povoação encostada ao mar a alguns quilômetros de uma cidade média” dá forma ao romance Debaixo de algum céu de Nuno Camarneiro, vencedor do Prêmio LeYa 2012. A referência ao romance La Vie mode d’emploi de Georges Perec é evidente e confirma-se logo na citação do romancista francês que abre o primeiro capítulo: “Rien n’est plus laid (les escaliers), plus froid, plus hostile, plus mesquin, dans les immeubles d’aujourd’hui”.

                Já no preâmbulo, o leitor vai se acostumando com o trabalho de linguagem presente em inúmeros trechos do livro: “O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva” ou, mais adiante, “a biblioteca é vasta e antiga, os livros mortos nas estantes sem esperança de voltarem a viver. São fantasmas com milhares de palavras que jazem em repouso”. Também La vie mode d’emploi retrata a vida de moradores de um edifício, mas em Paris. Também tem um preâmbulo e seu primeiro capítulo fala de escadarias. Essas são apenas algumas pistas das relações entre as duas obras, certamente um tema para tese acadêmica em literatura comparada.  Nuno reafirma a tradição literária portuguesa, historicamente em diálogo com a francesa. Mas não se limita a ela. Há outras referências, entre elas, Dante e Ítalo Calvino.

De 25 de dezembro a primeiro de janeiro, acompanha-se parte da vida e da morte dos habitantes desse edifício. Nenhuma vida, nenhuma morte, pode ser conhecida em sua completude “porque é fácil contar o que acontece, mas faltam palavras para o resto [...] quando alguém conta um dia ou uma vida está a calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras”.  

Um emaranhando de vozes compõe a narrativa. Diferentes perspectivas são contempladas. “O prédio em oito dias dobra muitas partes das vidas dos inquilinos. São vários os encontros de um morador consigo e com outros”. Nessa polifonia, aparece o padre Daniel com livros de autores como Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Kafka em sua biblioteca. Leituras pouco ortodoxas, para esse padre que deixou a casa paroquial para viver no prédio.

David trabalha em casa. É funcionário de uma empresa virtual, PORVIR, ironicamente futurista. Na igreja, conhece a devota Teresa: “As primeiras mamas que vi foi atrás da sacristia, enquanto decorria a missa. Este é meu corpo, tomai e comei, redondas e tão brancas que eu nem sabia para que serviam, olhei-as e se as toquei esqueci-me, eram só lindas as duas, com umas pontitas em bico que desafiavam todas as lógicas que eu conhecia. Este é o meu sangue tomai e bebei”. A provocação, ao estilo de Saramago, é porque “a ideia de pecado mata mais do que todas as bombas, o dever e a culpa são morte antes da morte”. Deus, a religião e a hipocrisia religiosa são temas recorrentes da narrativa: “Filhos-da-puta dos que seguem o Senhor! Filhos de um cabaz de putas! Cabrões de merda, beatos de fim-de-semana, fodam-se uns aos outros e deixem Deus para quem precisa!”, grita um homem descontrolado dentro da igreja. Não é gratuito a história estar ambientada no período natalino.

Nesse edifício, microcosmo do mundo, todo leitor se identifica de alguma maneira: “O Natal de um prédio é cheio de coisas felizes, que algumas se digam para que não se esqueçam. Tristezas não pagam dívidas e alegrias não contam histórias, mas umas e outras compõem vidas, de umas e outras se faz o tempo de uma história”. O tempo em que decorre nossa história, nossa vida, não é mesmo um emaranhado de alegrias e tristezas?

Ao apresentar vidas, esse romance de Nuno Camarneiro, é também uma grande indagação sobre a morte. “A perda dos corpos é por ora compensada com o bulício de quem ficou, não há o silencio, só ansiedade, perguntas e mágoas”. A leitura do livro do Apocalipse na missa de primeiro do ano e a homilia do padre Daniel trazem enorme carga simbólica à obra. História pessoal e história da humanidade entrelaçam-se. Tombará a noite no prédio, como tombará a morte na vida de todos nós: “Em breve será noite no prédio. A história apagar-se-á com o sol, recolhendo-se para dentro de quem a viveu e de quem soube escutar”. Nuno nos convida a escutá-la.  Vivê-la antes que acabe. Deixar “um último sonho atrasar o dia”.

 por Flavio Quintale

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

James Jazz Festival

 
   A epígrafe de Fitzgerald, “na noite profunda e escura da alma, são sempre três horas da madrugada”, logo de cara, e a lista de músicas a serem ouvidas durante a leitura prevista no canal do Youtube do livro (ver abaixo) dão o tom do romance A viagem de James Amaro de Luiz Biajoni publicado pela Língua Geral.  O Jazz, improvisação por excelência, dá o ritmo musical da narrativa. É uma experiência singular.
   James Amaro ecoa, em diversos momentos, The Great Gatsby. De família abastada, “usava calças e tênis de marcas importadas, algo raro naquele tempo”, sem contar os carrões de luxo, ele tem imensa atração por mulheres: “estava sempre atrás das meninas”.
 
   James torna-se advogado. Burguês casado e canalha. Com seu incansável “instinto de predador sexual” tem sempre segundas intenções com estagiárias, para tristeza da esposa Amanda. James Amaro, vara doce, é um sedutor implacável. E o Jazz faz parte da estratégia: “se você quiser comer mulheres, ouça jazz!”. Não é gratuito o jogo de palavras. Amanda ama Amaro. Mas amar James é amargo, “machista misógino”. 
   Assustado com uma amante suicida, procura sair daquele mundo. Viajar, representaria uma nova vida para James. Junto com o velho amigo reencontrado, Alex Viana, à beira de um suicídio,  empreende uma aventura On the Road, pelo interior de São Paulo e Paraty. “Caímos na estrada”. Thelma & Louise, cada um narra sua história e o leitor vai se familiarizando com os personagens. Alex Viana viveu em Londres e conta suas aventuras, para surpresa de James e do leitor, que atento, já poderia reconhecer, bem antes, o antagonismo que eles representam. Alex Viana avisa: “o único problema é que não como carne”. Ao contrário de James, que come, o tempo todo, maminha e fraldinha, na churrascaria e na cama.
   O romance, com variações de narradores, questiona a sociedade que julga as pessoas pelo o que têm e conseguem e não pelo o que são. “Ele estava meio que acima de todos, devido à sua condição social”. Pululam referências musicais e cinematográficas interagindo com temas como homossexualidade, AIDS, câncer e infanticídio.
 
   Os amigos purgam mutuamente o passado e fortalecem a amizade. O banco do carro torna-se uma espécie de divã que cura seus traumas e que os permitem a reconciliação, de alguma maneira, com a vida. O leitor se reconhece em vários momentos do romance. E irá certamente  considerar que, afinal de contas, a própria existência merece sempre uma nova chance.
 
por Flavio Quintale

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Toma chocolate, paga lo que debes


Vire e mexe vem gente vender coisas para mim. Recentemente uma moça tocou a campainha de casa e, pelo interfone, anunciou que eu havia sido escolhido entre os moradores do bairro para ter um desconto de vinte e cinco por cento nas contas de luz, gás e água.  Estava pensando em tudo naquele instante, menos nas contas de luz, gás e água. Já basta o sofrimento no dia do pagamento. Foi bem no momento em que, saboreando um café forte, lia o jornal The Independent que anunciava, com grande alarde, a proposição de Berlim em acolher cerca de 800 mil refugiados sírios no país. Alguns eufóricos veem a medida como parte de um pagamento humanitário que a Alemanha deve ao mundo. De fato, a medida é louvável. O mundo assiste o desespero de famílias em fuga em busca da sobrevivência. Fotos chocantes inundam nosso cotidiano. Dar-lhes um lar e perspectiva de futuro é um ato de solidariedade invejável. Por outro lado, a Dinamarca faz anúncios na imprensa da região dos conflitos desencorajando os refugiados a tentarem entrar em seu país. Os dinamarqueses leem a história do Patinho Feio de Andersen desde pequenos. Uma parte da população europeia teme o avanço mulçumano ainda maior no continente que pode vir com os refugiados. Foram séculos de luta pela liberdade religiosa. Revoluções e perseguições que custaram muitas vidas. O proselitismo islâmico assusta muitos dos que se opõem a recebê-los. Os partidos xenófobos ganham força. Michel Houellebecq não fez sucesso com seu Soumission por acaso. Esse é o cerne das discussões na Europa, não é somente a questão econômica.

                Mas como ouvi, pelo interfone, a palavra “desconto”, senti um “tim” nos meus ouvidos.  Fiquei interessado em ouvir a boa nova. Fui até a porta atendê-la em ritmo de chachachá. Ela pediu para entrar. Cordialmente, levei-a para se sentar à mesa que temos no jardim. Lá, comemos em família nos dias quentes, nos dias de festa e nos dias de churrasco. Ela se acomodou e começou a explicar que eu receberia um desconto de 25% se trocasse de companhia. Para tanto, eu deveria pagar uma multa para minha atual fornecedora. Ou seja, ela não me disse, mas fazendo os cálculos, no final das contas, a mudança me custaria mais caro. Educadamente, disse que não tinha interesse. Com certa irritação, ela insistiu em me convencer. “O senhor não quer ter desconto?” Entendo. Ela depende de persuadir as pessoas para ganhar uma comissão que, imagino, coitada, deve ser bem irrisória. “Não. Não quero”. Surpresa, ela começava a perder a esperança, até que argumentei que todas essas empresas eram geridas por delinquentes, querendo sempre explorar o consumidor. Vendo meu descrédito no sistema, desolada, ela concordou em ir embora.

Sem deixar de falar em faturas a pagar e voltando a tratar do caso espinhoso, sou obrigado a fazer uma confissão: suspeito de tanto amor. Estrangeiro que viveu tantos anos na Alemanha, como é o meu caso, terá provavelmente a mesma desconfiança que eu. É preciso tomar cuidado. Poderão ser criados guetos, como já existem em muitos lugares com os turcos. Quantos dos meus estudantes turcos, mesmo os mais brilhantes, já não foram vítimas de preconceito? O sobrenome é, em muitos casos, critério de seleção. O próprio governo já reconheceu que a integração é um fracasso. Mas não são eles um excelente exército de mão de obra barata? Gente para executar serviços que o alemão não está disposto a fazer. Gente jovem para garantir a aposentadoria dos mais velhos. É aquela história: toma chocolate, paga lo que debes. Um dilemme cornélien. Se ficam, morrem de bombas; se fogem, são massacrados psicologicamente. De presente de grego, até os gregos estão fartos. Eles conhecem bem a chanceler alemã. Em suas mãos, tudo vira negócio. Pode ser um Cavalo de Tróia. Atraí-los para um lugar único e depois encontrar outra solução, que nada tem a ver com afeto e solidariedade. Será? Tomara que não. Oxalá seja a vitória da fraternidade entre os povos. Mas não ponho minha mão no fogo. Já chega queimá-la com as contas de luz, gás e água.
por Flavio Quintale

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

As tribulações de um jovem Sefirot caótico


“Lembrei-me das palavras dos antigos cabalistas, alertando que a diferença entre luz e trevas é ilusória, pois ambas são únicas em natureza, e não há luz sem trevas, e não há trevas sem luz”. Essa citação intrigante colhida na página 27 é, em certo sentido, o tema fundamental do consistente romance Uma leve simetria de Rafael Bán Jacobsen publicado pela Não-Editora. 

Mas o leitor não precisa ter lido Gershom Scholem, muito menos ser conhecedor do Zohar ou do Bahir, para seguir essa narrativa envolvente onde tudo se refere ao duplo, ao real e ao ilusório, ao ser e ao parecer. A dicotomia aparece na personagem Daniel. Basta o leitor o seguir, atento a sua consciência atormentada e as suas aflições, para compreender o quanto ele sofre com seus escrúpulos e dilemas. As perturbações de um sujeito profundamente religioso ao descobrir desejos homossexuais: “se olharmos friamente para a Lei, nada impede o gostar; contudo, a realização é vedada”.               

Utilizando-se da imagem dualista da mística judaica, Rafael apresenta um tema extremamente atual, que atinge em cheio a sociedade brasileira. Em tempos de discursos intransigentes e apoderação de grupos religiosos da mídia e da máquina política nacional, o romance problematiza o drama do sujeito individual, esquecido dos grandes debates públicos, na luta com seus demônios pessoais: “Deve ser tão bom ter um Deus que se pode ver, pensei. O meu, contudo, permanece invisível, invisível e grandioso como a guerra travada dentro de mim”.

A obra está recheada de referências ao Pentateuco e diferentes versículos do Salmo 119 separam os capítulos. Sem contar as inúmeras passagens de ensinamentos da Kabbalah como: “no vazio de infinitos grãos, incontáveis mônadas, fadadas ao nada, espelhando o universo inteiro”. E, embora as alusões ao mundo judaico sejam constantes, o romance não se fecha ao particular, pelo contrário, aborda uma problemática ampla, vivida também por cristãos e mulçumanos.

Como um personagem de Kafka, o medo de um Deus rigoroso e vingador também atribula os seus: “adiante, na escuridão, o Rei os observava”. E, ainda que o romance não tenha nada de kafkiano, ele é absolutamente kafkiano. Fala de uma coisa para muitos para falar de outra para poucos. Não são também O Processo e O Castelo monumentos da Kabbalah em forma de romance? O leitor tire suas conclusões. 

                A narrativa é bem construída e Rafael demonstra grande conhecimento de teologia e filosofia, além de ter competente domínio da escrita, refletidas nas construções e no vocabulário apurado que permeiam a obra. Curiosamente, para o mundo em que vivemos, esse talvez seja o seu maior pecado.

por Flavio Quintale

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Speak, illusion


Dios en la niebla, pieza de teatro de Natalia de la Llana, se estrenó en la ciudad de Aquisgrán, Alemania. La sala estaba llena y el público que compareció seguro que no salió decepcionado. Al ser puesta en escena, la obra ganó una dimensión de colores y problemáticas que no se revelan tan fácilmente en la lectura del texto. Claro que el teatro es representación antes de todo y esto se probó una vez más en esta obra. Las partes más densas ganaron vivacidad en diálogos ligeros y en ningún momento la platea se quedó aburrida, a pesar de tratarse de una pieza seria. Seriedad muchas veces rota por el humor y la ironía, en particular del demonio representado de manera notable por Mónica Rodríguez con sus gestos y caras maliciosamente diabólicas. Aquí véase el débito de la autora al Mefistófeles del Fausto de Goethe, con quien dialoga abiertamente. 
 
De una parte, es una pieza sobre la soledad humana, “no hay peros. Estamos solos. Solos.”, tema tan caro a la tradición latinoamericana, si uno piensa en Cien años de soledad de García Márquez o El laberinto de la soledad de Octavio Paz, pero esto no sería suficiente para que la obra pudiese llamar particularmente la atención. Que estamos solos en el mundo contemporáneo ya es algo sabido. Pienso que lo que despierta el interés en Dios en la niebla es su discusión sobre la desilusión y la ilusión del hombre con la vida y de Dios con su creación.

Ilusiones humanas profesionales, la frustración con la carrera; económicas, la crisis que afecta el día a día de las personas; amorosas, Augusto, el protagonista, que lamenta no haber amado suficientemente a su mujer, ahora muerta, y, después, la desilusión con el nuevo amor; filosóficas, la comprensión socrática de descubrir que nada de lo que se sabe vale la pena, “¿Fuimos alguna vez otra cosa más que intérpretes de una realidad que no acabamos de comprender?”; existenciales, pues Augusto, grande ya en el nombre, se reduce a la nada, porque nada es lo que a él le gustaría ser; y religiosas, sus dudas y cuestionamientos sobre la fe, la Iglesia y Dios, que no hace nada para paliar los sufrimientos humanos y los males del mundo: “la compasión es el recurso de los débiles”.

Ilusiones y desilusiones como espejos. El ángel y el diablo, el profesor y la estudiante, la vendedora y el comprador, el patrón y la empleada y, finalmente, Dios y el hombre. Desilusiones no solo del hombre, sino también de Dios. Un Dios que no sabemos dónde está, si es que está en alguna parte. Creo que esa es la gran originalidad de la pieza. No hablar solo de la soledad o de la desilusión del hombre, sino imaginar estos mismos sentimientos en Dios. Desilusionado consigo mismo por la creación a la que ha dado vida, es el responsable en última instancia de los horrores del mundo y del abandono que siente el ser humano.

“Creo que ahora corresponde que juzguemos a Dios”, propone el diablo, “¡Pongamos bajo la lupa las acciones del Todopoderoso!”. Nietzsche mató a Dios, pero no todos están  acostumbrados a esa idea. Hay todavía una niebla que no nos deja ver el final, si hay un Dios que está o no en la niebla unamuniana. Si no hay, está tal vez perdonado. Si hay, ¿por qué no hace nada?: “¿Está bien que decline sus responsabilidades y nos deje solos?”. Si está muerto, ¿por qué insistimos en resucitarlo? Al iniciarse la pieza encontramos a Fausto, al salir, ya estamos Esperando a Godot. ¿Sale o no sale Godot de la niebla?

Dios en la niebla (Ñaque Editorial)  es una pieza que merece estar en los teatros madrileños y de toda España. Los españoles ganarán una gran contribución a su dramaturgia, ya tan rica. El mundo de las letras lo agradece.
 
por Flavio Quintale

Fotografía: Michael Lejeune
 



 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Espancando o leitor, esquartejando a literatura.


Os contos de Um Homem Burro Morreu de Rafael Sperling  servem a todas as pessoas que nunca tiveram, ao mesmo tempo, experiências com raposas e codornas. Tudo é possível no mundo. Mas no mundo de Sperling, apenas as certezas são impossíveis. As merdas de “Festa na Usina Nuclear”, sua primeira obra, ganham requintes de iguaria. Como o foie gras, esse livro corre grande risco de ser proibido em São Paulo.
Caetano Veloso vira personagem literário. E, pasmem, sem cuequinha à mostra, mesmo indo ao banheiro. Os heróis de Rafael são assim: não sabem fazer chá. No máximo sentam-se e seguram um rabanete. Em Eles eram muitos cavalos, o autor apresenta uma paródia do verso de Cecília Meireles e do conhecido livro de cenas paulistanas. “Eles eram muitos cavalos. Eles eram um monte de cavalos. Sério, era cavalo pra cacete. [...] Era uma quantidade gigantesca, não dava nem pra ver onde acabavam os cavalos”. O deboche vai até a conclusão reveladora: “Eles eram muitos cavalos, mas muito burros também”.
Sobrou até para Dante Alighieri. Em Um dia comum para Dante Alighieri, o grande poeta italiano, herói nacional, não passa dum miserável suburbano, como se Guelfos e Gibelinos, classe política, não fossem nada mais que gangs da periferia. Algum exagero?
Franz Kafka dança balé. O Homem Aranha, lambada. Branca de Neve vira uma espécie de rainha do Funk. “Os anos se passaram e Branca de Neve foi crescendo e crescendo, cresceram os peitos, as coxas, a bunda”. É contemplada nua, para delírio dos sete anões tarados. Rafael masturba imaginação nos seus contos. Detona, sem manter o respeito. É um talento sem-vergonha e safado. L’enfat terrible da literatura brasileira contemporânea.  A propósito, em termos de masturbação, seus personagens só perdem para os de Murakami, japonês mestre da descascada, o bronha sam.
Blasfemo, obsceno em Jesus Cristo espancando Hitler. Nem o Cristo de Dalí foi tão provocador. Nem Oswald de Andrade ousou dessa maneira. Nem Saramago foi tão explícito. Um Jesus Cristo sádico, malhando o execrável assassino, fazendo-o provar do próprio veneno. Ninguém é perdoado, nem os poetas, soberbos e vazios, que, em tom bíblico, vangloriam-se de versos como: “Vai, e não esquece da mandioca”, que título ao conto.
Em Ploin e Mânima – Drama em 5 atos, uma sátira a Samuel Beckett e à insistência aos silêncios de Harold Pinter, Rafael revela algumas de suas fontes literárias. Nesse “drama”, não se livra do escárnio nem o número sete, vedete de esotéricos e andarilhos místicos.
É notável a evolução de sua escrita e de seus conteúdos. Pornoniilista surreal, Rafael Sperling não quer escrever bonito. Violento e promíscuo, como o mundo em que vivemos, ele comprova, nesse segundo livro de contos publicado pela Oito e Meio, que faz literatura com o martelo. O leitor, nocauteado, termina em frangalhos debaixo dos escombros.  
 
por Flavio Quintale

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O palitinho do alemão


As semelhanças entre a Prússia e o Japão foram exaustivamente expostas pelos historiadores, embora os estereótipos sejam das coisas mais discutíveis que já se inventaram. Aquela coisa de que ambas as nações pensam em acumular capital mais do que viver, que têm muita competência, energia, crueldade  e avareza, tudo isso com muita obediência, que é ao mesmo tempo sua fortaleza e sua fraqueza. Um dia desses, resolvi almoçar num restaurante japonês na Alemanha. Talvez eu quisesse matar saudades dos passeios pelo bairro da Liberdade em São Paulo, que sempre tinham uma paradinha obrigatória para provar uns tantos sushi, sashimi, nigiri e por aí vai. É elegante alguém dizer que não gosta de indiscrição no restaurante, de ficar reparando no que os outros estão comendo nas mesas ao lado. Mas a verdade é que todo mundo disfarça e sempre dá uma olhadela nos pratos alheios. Não fugi à regra. Na mesa ao lado, um alemão resolveu pedir uma porção de chucrute. Ri internamente, com a boca do estômago, porque não queria ser indiscreto, nem parecer deselegante. Chucrute num restaurante japonês? Comeria o alemão chucrute de palitinho? Não. Não pode ser. Aparece cada personagem na vida real, pensei. Mas para minha surpresa, tinha. Havia chucrute. E lá foi o kamikaze bávaro, com palitinhos nervosos, mandando a carne, os legumes e a repolhada goela abaixo. Aquilo tudo junto, muito misturado, deve ter dado uma baita Blitzkrieg no banheiro da casa dele. Dizem que boas teorias se comprovam na prática. Então compreendi a frustração dos historiadores que precisam de infinitas análises e centenas de volumes em idiomas variados para comprovarem hipóteses, que em um almoço qualquer estariam resolvidas.
por Flavio Quintale